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hasard

Escrito em dezembro de 2011, o texto a seguir é a apresentação conceitual para hasard, novo trabalho do ERRO Grupo, que estreou no dia 09 agosto de 2012 em Florianópolis.

 

hasard

Os lugares onde você pisar, tudo o que você tocar, tudo que você deixar, até mesmo inconscientemente, servirá como evidência contra você. Não apenas as suas impressões digitais ou as suas pegadas, mas também seus fios de seu cabelo, as fibras de suas roupas, seus copos, as marcas que você deixa, as pinturas que você arranha, o sangue ou sêmen que você deposita ou coleta – tudo isso e outros vestígios são testemunhas contra você. Estas são as evidências que não desaparecem, que não são esquecidas, que não ficam confusas pela excitação do momento e que não são ausentes, como são as testemunhas humanas. São as evidências efetivas que nunca estarão equivocadas; não podem perjurar-se. Somente as interpretações destas evidências podem estar erradas e apenas o fracasso humano em encontrá-las, estudá-las e entendê-las poderá diminuir o seu valor.

As cidades, os governos, os estados, as nações são mortais. Tudo, naturalmente, por acidente, mais cedo ou mais tarde chega a seu limite e tende a acabar. Um cidadão que vê a derrocada de sua terra, não tem com o que se lamentar, tanto pela desgraça dessa terra e pela situação em que ela se encontra. Mas, ao invés disso, ele deve chorar a sua própria infelicidade, porque para a cidade aconteceu o que esperadamente aconteceria e a real infelicidade foi nascer no momento em que se sucede tamanho desastre.

Ao refletirmos sobre a obra de 2012, sobre o jogo em nossa sociedade, como propusemos em nosso projeto de manutenção, tivemos que percorrer um caminho árduo ao redor do tema, sendo que ele já foi explorado em outros trabalhos do ERRO Grupo como em Buzkashi, Formas de Brincar, Palavras decifram charadas e movimentos fazem dispositivo funcionar, entre outros. No decorrer desta pesquisa o grupo percorreu diversas referências, como Johan Huizinga, Jacques Ranciére, Guy Debord, Fredric Jameson, Michel Maffesoli e Gilles Deleuze. Atualmente, para pensar e criar um trabalho sobre o jogo do capital, das bolsas, dos créditos, o ERRO se debruçou, além desta gama de referências citadas acima, em escritos de Walter Benjamin, Karl Marx, Giorgio Agamben, Gustav Landauer, Paul Kirk e Michael Löwy e em textos dramatúrgicos como Fim de jogo de Samuel Beckett, O jogador de Fiodor Dostoiévski, O processo e A construção de Franz Kafka, O interrogatório e O novo processo de Peter Weiss, além de uma série de manuais de diversas atividades, tais como controle de multidões, manipulação de armas e explosivos, mercado futuro, etc.

Em Profanações, Giorgio Agamben afirma que todo jogo nasce da profanação de um rito ou mito religioso. Profanar significa a possibilidade de uma forma especial de negligência que ignora a separação entre o humano e o divino, ou faz dela um uso particular. O jogo não só vem de uma esfera do sagrado, mas como representa a sua inversão.

O caminho também se mostrou árduo, pois nós sujeitos já não sabemos mais jogar, o que fica comprovado pela multiplicação constante de novos e velhos jogos que tudo que fazem é tentar resgatar a profanação ora espontânea de ritos e mitos. Ou seja, tenta-se secularizar o jogo, em uma tentativa de deixar intacto o mito e/ou rito, de apenas deslocá-lo de um local a outro. Deixando a sua integridade intacta. Profanar é resgatar algo que está fora de alcance do uso comum e devolvê-lo ao espaço comum.

É possível dizer, segundo Agamben, que há jogo quando o rito é utilizado separado do mito, ou vice-versa. O que significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. Tanto que profanare como coloca o autor, significa tanto “consagrado aos Deuses” quanto “maldito, excluído da comunidade”. A profanação dos jogos se apropria de estratégias utilitárias, e as desvia para outra dimensão, a da subversão.

A partir da idéia de que os jogos são criados a partir da subversão de um rito religioso, pensamos sobre o que seria esse rito religioso na sociedade, e chegamos ao artigo de Walter Benjamin, O capitalismo como religião. Walter Benjamin sugere que o capitalismo é uma religião puramente cultural, talvez a mais extremamente cultual que já existiu “nada nela tem significado que não esteja em relação imediata com o culto, ele não tem dogma específico nem teologia. O utilitarismo ganha, nesse ponto de vista, sua coloração religiosa.” Investir, comprar, apostar, manobrar a bolsa de valores, vender, são práticas utilitárias do culto ao capitalismo. Uma religião pagã, sem preocupações transcendentais, prática, onde o que conta são as ações.

Como escreveu o pensador anarquista Gustav Landauer, o único Deus, o único ídolo, a que os humanos dão as suas vidas é o dinheiro, artificial e vivo. Este ídolo, o dinheiro, produz dinheiro e mais dinheiro, e isto lhe confere todo o poder do mundo. Todos nós podemos ver, hoje em dia, que o dinheiro, que este Deus, não é outra coisa senão uma invenção dos seres humanos, algo que se tornou uma coisa viva, um monstro que faz residir nele o vazio sentido de nossas vidas. Segundo Landauer, “o dinheiro não cria riqueza, ele é a riqueza; ele é a riqueza em si; não existe outro rico além do dinheiro”.

Existem outras evidências de que o capitalismo se configura como religião – a característica de culto e a questão da culpa. Segundo Benjamin, “a duração do culto é permanente”. O capitalismo é a celebração de um culto sem trégua e sem piedade e na religião capitalista, cada dia se vê a mobilização sagrada – os rituais nas bolsas de valores ou nas fábricas – enquanto os adoradores seguem, com angústia e tensão extrema, a subida ou a descida das cotações das ações. Este culto não é expiatório, mas culpabilizador e, nesse caso, não é possível separar, no sistema da religião capitalista, a “culpa mítica” da dívida econômica.

A noção de que temos deveres para com as posses que nos foram confiadas e às quais estamos subordinados. Quanto mais aumentamos os nossos bens, mais latente torna-se o sentimento de responsabilidade que nos obriga a aumentá-los por meio de um trabalho sem descanso, fazendo com que a culpa entre à força na consciência. Como coloca o estudioso Michael Löwy: “o capitalista deve constantemente aumentar e ampliar seu capital, sob pena de desaparecer diante de seus concorrentes, e o pobre deve emprestar dinheiro para pagar suas dívidas. Somos instados a pensar que a única salvação reside na expansão capitalista e no acúmulo de mercadorias, mas isso só faz agravar o nosso desespero.

O jogo do mercado, utilizando os conceitos de jogo elaborados por Johan Huizinga em Homo Ludens, nos leva a vermos que estamos perante um mundo em que a decisão por oráculos, pelo juízo divino, pela sorte, por sortilégio — isto é, através de jogos — está controlado por uma única regra, o lucro do capital. A nossa ansiedade em sermos os primeiros assume tantas formas de expressão quantas as oportunidades que a sociedade oferece, as maneiras segundo as quais os homens são capazes de competir pela superioridade são tão variadas quanto os prêmios que são possíveis de se ganhar. Contudo, para o mercado há apenas um vencedor em todos os jogos sociais: o dinheiro.

Nossas decisões podem ser dadas por nossas sortes, azares, forças, destrezas, lutas, etc., também podem ocorrer através de competições de coragem e resistência, habilidades, conhecimentos, respostas a determinadas perguntas, fanfarronice ou astúcia, ou seja, o jogo permite-se assumir a forma de um oráculo, de uma aposta, de um julgamento, de um voto ou de um enigma, mas, seja qual for a sua forma em nossa sociedade contemporânea ele estará regido pelas leis do mercado e é sob este ponto de vista que devemos interpretar a sua função cultural a ser profanada.

Dramaturgia: Luana Raiter e Pedro Bennaton (Dezembro de 2011)