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Sobre Desvio FIT RIO PRETO 2007

Texto de Julio Groppa, publicado no Jornal FIT 2007 em 19/07/07, sobre a apresentação de Desvio no dia 18/07/07 pelo Festival Internacional de São José do Rio Preto.

Julio Groppa – “Desvio” | 19/07/2007

 
IMPERMANÊNCIAS COLETIVAS

“Estamos no lixo até as orelhas. Fedemos a suor”. Assim pontifica a narradora de Desvio, espetáculo de rua e de percurso a cargo do grupo catarinense Erro, o qual visa lançar luzes sobre um segmento populacional “invisibilizado” e suas formas singulares de vida: aqueles expropriados de quase tudo, a não ser do ato mecânico de prosseguir existindo. Existências anônimas, insignificantes, sem valor. Existências-lixo.

E é exatamente lá onde o lixo é depositado, nos mesmos espaços onde essas formas de vida prosseguem seu périplo fantasmagórico, que a peça obriga a nos postar: nas ruas e calçadas do centro das cidades, abandonadas a partir do cair da noite. Ruas e calçadas que fervilhavam horas antes, mas que, como num passe de mágica, tornam-se subitamente ameaçadoras. Ruas e calçadas ocupadas por existências noturnas que prosseguem sem alarde – não por arbítrio, mas por necessidade. Ruas e calçadas que cumprem a função precisa de clausura a céu aberto, em larga escala e sem chance de redenção. Território último onde viver ou morrer, afinal, pouco divergem um do outro. Deserto de todos os desertos, lá se sobrevive apenas. Daí o compromisso ético-político de um espetáculo como Desvio, o que, de largada, lhe confere um quilate substantivo.

A propósito, o desencastelamento da prática teatral operado por uma intervenção desse tipo é digno da mais alta louvação. Isso porque o que ali está em questão poderia perfeitamente ser tematizado num espaço convencional, mas não seria experienciado como o é em locais públicos – aqui “invadidos” (melhor dizer, reapropriados) pela trupe catarinense e sua platéia titubeante. Esta aperta o passo, se inquieta, tenta acompanhar o que lá se passa, movida talvez por uma curiosidade despretensiosa, fútil até. O “respeitável público”, em cortejo, tenta acompanhar com afinco a narração de um crime prestes a acontecer. Nem sempre consegue fazê-lo. Alguns tombam pelo caminho. Meno male. Tanto melhor do que ter de incomodar os vizinhos de fileira com pedidos polidos de licença.

Em termos gerais, o enredo poderia ser descrito como a crônica de um assassinato anunciado, entoada de modo maneirista, com trejeitos circenses. Uma “noite eterna” (belíssima evocação, aliás) que de fato acaba ocorrendo, mas não com a vítima declarada de antemão. Tudo isso embalado por paródias intermitentes de musicais americanos dos anos 50, encarnadas pelas personagens em passos ensaiados de dança e canções melosas.

A narradora, também personagem ativa na trama, age como uma agente psiquiátrico-higienista que tenta controlar os passos e as atitudes de três outras personagens com ares de lunáticos: uma mulher e dois homens – interpretados de modo irregular e, às vezes, não convincente pelos atores, deve-se sublinhar. Um deles, em particular, é tomado por um torpor constante que se converte num sono tão farmacológico quanto atávico. Uma noite eterna em doses homeopáticas.

A alusão à loucura presta-se aqui a metaforizar o desgoverno a que os espectadores são submetidos no decorrer do espetáculo: inútil pleitear uma visão integral das cenas; inútilquerer ouvir os diálogos com precisão; inútil empreender um entendimento linear da trama. Tudo inútil, só restará deixar-se levar pela turba. Impermanências coletivas, partilhadas indistinta e intensivamente. Efeito magno, mas acanhado do espetáculo, obtido a duras penas. Isso porque parece faltar uma certa maturação do roteiro. Sem alguns excessos experimentalistas e com um pouco mais de generosidade do texto, talvez fosse possível angariar outros espectadores durante a jornada. Pena não fazê-lo.

Em Desvio, tudo pode mudar de direção e, portanto, fugir ao controle tanto dos espectadores quanto dos próprios atores. Mas, paradoxalmente, algo permanece incólume: a violência e sua espetacularização. Os gestos violentos desferidos entre si pelas três personagens chocam. Chocam não apenas porque expõem despudoradamente a danificação física/moral do outro a que temos nos habituado, mas porque levam a crer que não há outra linguagem possível nos submundos habitados por essas criaturas feias, sujas e malvadas – seja como resposta à parca ou nenhuma atenção que o “lado de cá” lhes oferta, seja como naturalização de uma rotina venenosa e horrenda das pautas do agir. Seja como for, a banalização da violência, ali representada, resulta numa faca de dois gumes que parece nunca deixar de cortar, cortar e cortar. Saímos todos mutilados de Desvio

Eis aqui, talvez, o nó górdio da recente produção do grupo Erro. Por vezes, o espetáculo mais se parece – com o perdão da analogia – com uma Laranja pós-mecânica. A violência ali testemunhada apresenta-se de modo implacável, hermético e vedado ao desmonte. Se a mecanicidade anterior nos legava alguma possibilidade de estranhamento e de reação, o que nos restaria agora? Como debelar aquilo que se postula automático, fatalizado, aquém ou além das possibilidades de resistência? Desvio não responde tal interpelação, mas a traz à baila. Afortunadamente.

Leitor crítico: Julio Groppa Espetáculo: “Desvio”, Erro Grupo, Florianópolis/SC.
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