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Erro Grupo e a invasão pela formulação de desvios de discursos

Erro Grupo comemora seus 10 anos com a montagem do espetáculo Formas de Brincar

por Marco Vasques

I
O teatro de rua, ou melhor, o teatro feito para ser apresentado na rua quase sempre tem o caráter de divertir, de alegrar, de envolver o passante através do clown, da burla, da fábula. É bom lembrar que no século VI a.C. Téspis já fazia suas apresentações, em um carro, no meio do mercado de Atenas. O que equivale dizer que o teatro nasceu na rua. Se levarmos em consideração que os ritos tribais/míticos, anteriores a Téspis, estão imbuídos da atitude cênica [Kristeva] confirmamos o caráter público e mundano da arte teatral. É bom alertar que divertir e alegrar são qualidades [Brecht] e não defeitos, sobretudo quando apresentam outras camadas de leituras. O Erro Grupo apresentou em Brusque, durante o Festival Catarinense de Teatro, seu novo trabalho FORMAS DE BRINCAR. As intervenções no ambiente urbano e na paisagem humana reafirmam as pesquisas que o grupo vem desenvolvendo há 10 anos. É da morte do espírito lúdico, da ausência de espontaneidade, da mecanização das ações, da petrificação da carne, da coisificação do homem, da sexualidade, das disputas infundadas, da banalização do jogo e da institucionalização dos sentidos que fala FORMAS DE BRINCAR. Não precisamos chegar aos filósofos [Huizinga, Baudrillard e Foucault] que norteiam o trabalho do grupo porque podemos passar, antes, pelos mitos gregos, romanos e cristãos, pelos textos sagrados, por Marquês de Sade e Rimbaud. As atrizes Luana Raiter, Sarah Ferreira e Paula Felitto levam os transeuntes à estupefação, ao espanto [Platão], ao prazer e ao estranhamento porque leem os espectadores pelo toque, pela provocação, pela brincadeira, pela ranhura na pele e pelo convite à análise [física e psíquica] das ações que o espetáculo desencadeia no ambiente, na paisagem e nos homens que vivem o trabalho FORMAS DE BRINCAR. É na órbita do desvio [nome de um dos espetáculos do grupo], do estranhamento, da surpresa, da ocupação/posse do ambiente, do deslocamento, da fratura [exposta] e da ação crítica que FORMAS DE BRINCAR se situa. Transita entre os conceitos de presença do ator [Richard Schechner] e o teatro in/visível [Augusto Boal]. É na formulação do discurso que a teia das ações do Erro Grupo reverbera. Entrar do jogo de alguns de seus espetáculos é navegar numa linha tênue entre real e o ficcional. É um teatro descontaminado de teatro, contudo teatralidade pura. É, também, um teatro de ironia refinada que ilumina sobre a luz [Diógenes].

II
Três mulheres, em uma praça pública, vestidas com roupas que representam culturas distintas se apresentam; elas fazem uma espécie de exibição de suas crenças. Não se toleram. Ao término da exibição tiram suas roupas e entram numa luta corporal. Mas não é uma luta corporal qualquer porque se agridem a partir dos símbolos de suas raízes, se mutilam com/pelo símbolo. Após a cena de violência e de intolerância as três mulheres se dirigem ao público, de lápis nas mãos, e travam uma luta pela correção do corpo. Sim! O pedido é para que o público vá a alguma das atrizes-mulheres e risque a “parte mais feia da outra”. Há uma espécie de julgamento e sacrifício em público. Enquanto isso os atores Michel Marques e Juarez Nunes brincam o jogo popular das Cinco Marias. Contudo o jogo, que tem na sua origem o aspecto puramente lúdico, passa por uma disputa monetária que interfere intertextualmente nas ações das atrizes. Estas duas cenas nos oferecem material para inúmeras páginas. Mas o público é tomado pelos múltiplos jogos ofertados. As atrizes usam seus corpos e tomam de empréstimo vários corpos de espectadores que passam a fazer parte da cena, passam a atuar e saem da condição tradicional de passividade. Passam a atuar e, em alguns momentos, se tornam o centro da ação cênica. Mas FORMAS DE BRINCAR é tomado de uma ironia acerba e de um niilismo [Nietzsche] capazes de tatuar, para sempre, um desconforto na vida-rotina de quem vive e entra em suas perversidades brincantes. Numa sociedade em que tudo é mensurado pela matéria, pela posse, pelo poder, por títulos e categorizações FORMAS DE BRINCAR apresenta, ao final, uma votação pública com intuito de premiar a performance das atrizes. A vencedora receberá um troféu: a caveira de um gado. É na linguagem e na fala/mito [Barthes] que reside a força conceitual do trabalho do Erro Grupo. Temos que entrar na vida de FORMAS DE BRINCAR como se deve entrar na leitura do livro O Jogo da Amarelinha de Cortázar, isto é, olhar as multiplicação/fragmentação de todos os todos. Acompanho a trajetória do Erro Grupo desde de sua formação [2001] e posso assegurar que estamos diante de um grupo de experimentos radicais que colocam em questão não só a pasteurização social, mas o próprio teatro e sua prática. Há na estética do grupo uma minimização dos elementos tradicionais do teatro [dramaturgia, cenário, iluminação] e uma apropriação dos espaços urbanos: praças, prédios, ruas, casas etc. A cidade é envolvida organicamente na cena a ponto de toda ela se tornar o cenário e a ação teatral em si. Assim foi com ENFIM UM LIDER, ESCAPARATE, DESVIO e assim é agora com FORMAS DE BRINCAR. É no desvio do discurso das ações tradicionais, coisificadas e embrutecidas que a vida teatral [Peter Brook] do Erro Grupo, dirigido por Pedro Bennaton, formula sua rota de colisão, de enfrentamento e de desnudamento dos aspectos mais escrotos da falsa sanidade que nos cerca. É a linguagem e seus processamentos que moram no linguajar do Erro Grupo. Jean-Paul Sartre, em Qu’est ce que la littérature afirma que nenhuma arte pode ser atual se não buscasse o “brutal frescor do acontecimento, sua ambiguidade, sua imprevisibilidade […] queremos agarrar nosso público pela garganta: seja cada personagem uma armadilha, seja o leitor apanhado nela e seja ele arremessado de uma consciência para outra como de um universo absoluto e irremediável para outro analogamente absoluto: fique ele incerto sobre a própria incerteza dos heróis…”. FORMAS DE BRINCAR é brutal, terno e capaz de incomodar até o mais obtuso dos homens.

Fonte Revista Osíris